Efervescência poderosa

fonte mineral antiga
Cartão postal de um resort em Desert Hot Springs, California, ca. 1930–1945. (Fonte: Boston Public Library)

No século XVIII, Joseph Priestley e outros desenvolveram processos para a fabricação de água mineral carbonatada artificialmente, unindo os poderes terapêuticos de um antigo restaurador natural com a ciência emergente da química moderna.

As águas minerais gasosas do século XXI são bebidas de alto padrão: Vichy, Evian e Perrier persistem como símbolos de sabor e classe. Mais do que apenas uma bebida, no entanto, a água com gás representa um dos últimos vestígios das fontes termais terapêuticas que foram um dos pilares da medicina ocidental por mais de dois milênios. A história de sua ascensão e queda não é apenas a base oculta da massiva indústria moderna de refrigerantes, mas também a história de uma crescente aliança entre química e medicina que reformularia a prática terapêutica ocidental.

Cartaz francês anunciando as águas da nascente de Saint-Yorre de Vichy. Litografia a cores de Albert Guillaume, 1896.

Les affiches illustrées via Wikimedia Commons

Em junho de 1772, o ministro [do partido] Radical Joseph Priestley (1733-1804) descreveu os detalhes de um processo que acabaria por lhe render o maior prêmio da Royal Society, a Medalha Copley. Ele tinha pingado um pouco de óleo de vitríolo (ácido sulfúrico) em uma mistura de giz e água, capturou o ar fixo (dióxido de carbono) que borbulhava do giz em uma bexiga e borbulhou o ar fixo por uma coluna de água, que ele então agitou em intervalos. A substância resultante foi, Priestley escreveu, “uma água espumante extremamente agradável, parecida com água Seltzer”.

As histórias da indústria de refrigerantes geralmente começam com esse momento – um dos primeiros métodos simples de produzir o que hoje chamamos de água gaseificada. Os historiadores da química também se referem a ele como um evento significativo no desenvolvimento da química pneumática (o estudo dos gases dos séculos XVII ao XIX). Como muitos de seus colegas químicos, Priestley estava aperfeiçoando a recente descoberta de que o ar, anteriormente considerado um único elemento (um de apenas quatro), era composto de diferentes elementos. Logo após seu trabalho com água mineral, ele foi creditado com a descoberta do que ele se referiu como “ar deflogisticado”, uma substância que Antoine-Laurent Lavoisier logo batizaria de “oxigênio”.

Mas para Priestley, a água efervescente não era apenas uma bebida agradável, nem era apenas um problema filosófico. Em vez de criar uma nova substância, ele estava imitando uma antiga. Em particular, ele estava tentando recriar a água mineral naturalmente espumante que emergia da famosa “Caverna do Vapor” de Pyrmont, perto de Hanover, na Alemanha. (A água com gás a que ele se refere não é o produto engarrafado moderno, mas as águas das nascentes de Seltzer, Alemanha.) Além disso, não era o sabor único da água de Pyrmont que Priestley procurava, mas seu efeito no corpo. Para Priestley, como para seus contemporâneos, a água era um remédio.

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Cartaz francês anunciando as águas da fonte de Saint-Yorre de Vichy. Litografia a cores de Albert Guillaume, 1896. (Fonte: Les affiches illustrées via Wikimedia Commons)

Água como remédio
Durante séculos, os europeus aproveitaram sua paisagem notável e variada de fontes naturais de água mineral. Nascentes quentes como as de Vichy e Bath ofereciam águas aquecidas pelo calor geotérmico ou pelo contato com o magma; outras, como aquelas em Nápoles, eram notáveis ​​por sua frieza dolorida. Algumas eram salgadas, outras tinham sabor de (e cheiravam) enxofre, álcali ou ferro. Finalmente – e talvez o mais misteriosamente – algumas, como das cidades de San Pellegrino, Seltzer, Pyrmont e Vergèze (a fonte de Perrier), tinham o agradável sabor ácido produzido pelas bolhas. Nossa palavra spa vem da cidade de Spa, na Bélgica, cujas águas “chalybeate”, ou ferro-portadoras, eram usadas medicinalmente por 400 anos. Pistas sobre a importância das fontes permanecem nos nomes das cidades modernas que foram fundadas em fontes: Carlsbad e Wiesbaden (Bad significa “banho” em alemão), Baden-Baden, Tunbridge Wells e, claro, Bath.

Durante séculos, os europeus aproveitaram sua paisagem notável e variada de fontes naturais de água mineral.

Registros de hidroterapia e balneologia, o uso medicinal de águas e banhos, remontam à antiguidade clássica. Médicos greco-romanos hipocráticos utilizavam sequências de banhos quentes e frios para equilibrar e harmonizar os humores de seus pacientes. Plínio o Velho e Vitrúvio listaram fontes com qualidades excepcionais para tratar doenças dos tendões, articulações, trato urinário e pele. Os romanos doentes bebiam de fontes alcalinas para se livrarem de tumores e de fontes ácidas para destruir cálculos biliares. As elaboradas ruínas dos complexos de banho romanos em Baden, na Suíça, e Aquae Sulis, na Grã-Bretanha (hoje a cidade de Bath), atestam a intensidade do interesse dos romanos pela hidroterapia.

Embora a medicina hipocrática tenha diminuído temporariamente durante a Idade Média, o uso de fontes minerais continuou. “Poços sagrados”, primeiramente associados a divindades pagãs e depois designados à santos cristãos, ocuparam o lugar dos banhos romanos. O renascimento da medicina grega na Renascença trouxe de volta as fontes antigas à proeminência. Mais tarde, durante o início do período moderno, o surgimento da chamada medicina química produziu novas justificativas para práticas antigas, estimulando a prescrição terapêutica de minerais e metais.

Por volta do século XVIII, as fontes tornaram-se locais da moda, onde visitantes distintos e aristocráticos se reuniam para dançar, passear e “tomar as águas”. Em Bath, uma multidão sazonal de turistas bebia e mergulhava no que hoje sabemos ser uma sopa levemente radioativa de potássio, chumbo, ferro, estrôncio, cálcio, magnésio, bismuto e enxofre. De fato, cidades inglesas como Harrogate e Epsom existiam apenas para sustentar suas nascentes, e as águas terapêuticas de Carlsbad (na atual República Tcheca), Eger (na Hungria), Seltzer, Spa e Pyrmont eram regularmente transportadas pela Europa em garrafas.

Por volta do século XVIII, as fontes tornaram-se locais de moda, onde visitantes gentis e aristocráticos se reuniam para dançar, passear e “tomar as águas”.

Águas Manufaturadas
Dadas as imensas somas investidas e derivadas de fontes minerais, não é surpresa que gerações de químicos, incluindo filósofos naturais bem conhecidos como Robert Boyle, Friedrich Hoffmann e Stephen Hales, tentassem explicar o que tornava cada fonte única. Além disso, quando as primeiras análises químicas revelaram materiais conhecidos como ferro, nitro, vitríolo, sal marinho e alúmen, era certo que as tentativas de imitar ou mesmo superar a natureza logo se seguiriam.

Talvez a mais espetacular dessas imitações tenha sido “o duque Bagnio” ou “New Spaw”. Este banho turco, estabelecido no Long Acre de Londres por Samuel Haworth, médico do duque de York, apresentava águas minerais artificiais que pareciam borbulhar no chão. Logo após a abertura do Bagnio em 1685, Robert Boyle publicou um ensaio sobre “a imitação das Águas Medicinais Naturais, por meios químicos e outros”, que ele pretendia “ajudar o médico a adivinhar a qualidade e a quantidade de outros ingredientes que impregnavam a Água Natural proposta ”. Em 1698, o botânico Nehemiah Grew comercializou os sais de Epsom (sulfato de magnésio) como uma recriação simples e duradoura das águas minerais de Epsom, e depois bebido como um purgante e famoso por sua eficácia contra as úlceras. Até hoje, os sais de Epsom são usados ​​como escalda pés e bebido como remédio para a constipação.

No início do século XVIII, dezenas de químicos e médicos inventavam (e os pacientes bebiam) garrafas de água mineral artificiais, feitas de escória de fundição, potassa, creme de tártaro, cal viva e alúmen. Com o passar do século, os fabricantes de águas artificiais começaram a argumentar que seus produtos tinham certas vantagens sobre as substâncias naturais. Não só havia água mineral artificial disponível fora das “estações” dos spas, mas também podia ser mantida livre das substâncias venenosas que às vezes atormentavam as águas naturais. Também podiam ser feitas em concentrações mais altas, permitindo que os pacientes obtivessem os mesmos benefícios sem precisar beber doses tão grandes quanto 16 litros por dia.

Esta série de imitações deixava os médicos que praticavam em fontes minerais em um dilema. Embora apreciassem a análise química como método de demonstrar as virtudes de suas nascentes, ficavam compreensivelmente nervosos que a análise possibilitasse a imitação. Teorias anteriores, como a ideia de que diferentes águas minerais eram “especialidades naturais”, medicamentos criados pela natureza para benefício do homem como evidência do desígnio beneficente de Deus, pareciam oferecer apoio a alegações da superioridade das águas minerais naturais. Essa ambivalência resultou em debates públicos em panfletos e revistas médicas: as águas minerais funcionavam porque continham produtos químicos valiosos, o que poderíamos chamar de “ingredientes ativos”? Ou seriam apenas eficazes como conjuntos complexos, emergentes de fontes naturais, criados por processos subterrâneos que os humanos não poderiam esperar imitar?

Priestley e sua água efervescente
Um dos argumentos mais fortes a favor do uso de águas minerais naturais era a sua efervescência. As águas retiradas das nascentes efervescentes e mantidas por muito tempo perdiam seu “espírito mineral”; isto é, ficavam insossas. Mesmo quando frescas, as primeiras águas artificiais não possuíam esse “espírito”. Embora nem todas as fontes naturais possuíssem as propriedades borbulhantes que atraíam os que procuravam a saúde em Pyrmont, Vichy e Seltzer, tanto a evanescência das bolhas quanto o sabor alterado das águas sem gás sugeriam que as águas irrevogavelmente perdiam uma qualidade importante quando imitadas ou levadas para longe de sua fonte.

Foi precisamente essa questão que tornou o trabalho de Priestley na água mineral tão significativo. Ao trabalhar para restaurar o espírito mineral, Priestley foi capaz de se basear no trabalho de numerosos predecessores. Na década de 1720, o clérigo e fisiologista Stephen Hales desenvolvera o aparato pneumático, que Priestley usaria mais tarde para manipular gases puros, como uma maneira de medir os “ares” criados pelos processos fisiológicos. Na década de 1750, o químico e médico Joseph Black identificou a substância que agora chamamos de dióxido de carbono como “ar fixo” e, e na década de 1760 o médico William Brownrigg (1711–1800) argumentou que o espírito mineral das águas minerais era idêntico às bolhas produzidas pela fermentação e ao “asfixiante” que ameaçava os mineiros.

Um dos argumentos mais fortes a favor do uso de águas minerais naturais era a sua efervescência.

Para Priestley, estudos recentes do ar fixo sugeriram novas possibilidades terapêuticas. A recente candidatura de Priestley ao posto de naturalista de embarcação na segunda viagem do explorador James Cook levou à atenção de Priestley o problema médico incapacitante da Marinha Britânica, o escorbuto. Sendo que os recentes trabalhos sobre o apodrecimento da carne pelo médico David MacBride (1726-1778) pareciam sugerir que o ar fixo interrompia a putrefação, Priestley argumentou que beber a água impregnada com ar fixo não deveria apenas curar o escorbuto, que se pensava ser uma espécie de podridão, também outras doenças associadas à putrefação, incluindo pulmões ulcerados e cânceres. Atendendo a aprovação da Marinha Britânica, o aparelho de Priestley para borbulhar ar fixo através da água foi embarcado nos navios de Cook.

Três anos após a publicação do panfleto de Priestley intitulado “Impregnando Água com Ar Fixo”, o médico britânico John Mervyn Nooth apresentou à Royal Society o equipamento Nooth, um arranjo vertical de três vasos de vidro que arejavam a água no vaso central infundindo-a com ar por baixo. O equipamento Nooth tornou-se o modelo para os dispositivos de carbonatação usados ​​nas drogarias. O famoso químico Benjamin Silliman usou o equipamento de Nooth quando introduziu as águas minerais produzidas comercialmente nos Estados Unidos, abrindo lojas primeiro perto de sua casa na Universidade de Yale e depois em Nova York e Filadélfia. Na década de 1780, outro contato de Priestley, o joalheiro suíço e cientista amador Jacob Schweppe, rapidamente assumiu o mercado de Londres com águas minerais cintilantes artificiais feitas usando um motor de bombeamento. O sifão – que agora chamaríamos de uma garrafa de seltzer – apareceu na Grã-Bretanha em 1837.

Uma segunda onda de águas minerais
Como muitos de seus concorrentes, Schweppe acrescentou ao valor medicinal de seus tônicos misturando-lhes xaropes de ervas – um dos quais evoluiu para uma bebida imortalizada como Ginger Ale, de Schweppe. No decorrer do século XIX, os consumidores se acostumaram com uma série de sabores medicinais, do gengibre e da noz de cola ao quinino, que deu ao gin-tônica seu sabor característico e protegeu da malária os administradores britânicos imperiais. Esses novos produtos foram anunciados tanto como bebidas quanto como medicamentos, sob nomes como “buffalo mead” e “imperial nerve tonic”, que gradualmente perderam seu significado medicinal. A Coca-Cola, originalmente anunciada como um inequívoco medicamento estimulante (embora seu notório conteúdo de cocaína fosse insignificante), seja talvez o exemplo mais famoso dessa transformação.

O banho de água mineral sofreu uma mudança semelhante no significado. Apesar da competição oferecida pelas águas minerais artificiais do final do século XVIII em diante, as visitas à fontes termais e minerais permaneceram como parte importante da terapia até o século XX, como evidenciado pela confiança bem difundida de Franklin Delano Roosevelt nas águas de Warm Springs, Georgia. No entanto, tal como as férias à beira-mar, que foram originalmente concebidas para tirar partido dos poderes curativos do ar do mar, as visitas aos spas tornaram-se cada vez mais meramente recreativas do que terapêuticas.

A água Pyrmont, de Joseph Priestley, não teve sucesso como cura para o escorbuto (embora seu colega Brownrigg tenha se mostrado muito mais bem sucedido, com um dispositivo de carbonatação que misturava giz com suco de limão). Mas examinar os esforços de Priestley nos ajuda a encontrar as raízes da indústria moderna e delineia a forma de um passado médico complexo. Ao beber um copo de ginger ale, água com gás ou Perrier, estamos participando de uma tradição terapêutica secular.

Texto escrito por Emely Pawley.

Traduzido por Prof. Dr. Luís Roberto Brudna Holzle ( luisbrudna@gmail.com ) do original ‘Powerful Effervescence’ com autorização oficial dos detentores dos direitos. Revisado por: Natanna Antunes.

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